O avanço das tecnologias digitais têm proporcionado novas formas de arquivar e preservar obras de arte. No contexto contemporâneo, apresentam-se diferentes perfis de arquivamento digital, que buscam armazenar obras de arte em formatos eletrônicos, permitindo sua reprodução e acesso amplo
Arquivos digitais e arquivos digitalizados
Grosso modo, podem-se diferenciar dois tipos de arquivos digitais: arquivos nativamente digitais e arquivos digitalizados, que constituem duas categorias distintas, desempenhando papéis importantes no contexto do armazenamento e preservação de informações e da memória política, cultural e social. Vamos definir e diferenciar essas duas formas de arquivos. [1]
Arquivos nativamente digitais são aqueles que foram criados e existem em formato eletrônico desde sua concepção inicial. Esses arquivos são produzidos por meio de processos digitais e não têm uma contraparte física correspondente. São exemplos de arquivos nativamente digitais os documentos de texto, planilhas eletrônicas, apresentações de slides, imagens digitais, vídeos, áudios, entre outros. Esses arquivos são criados diretamente em formato eletrônico, sem a necessidade de serem convertidos ou digitalizados a partir de uma versão física.
Por outro lado, os arquivos digitalizados referem-se a documentos ou objetos que foram convertidos de seu formato físico original para um formato eletrônico. Nesse processo, utiliza-se um scanner, câmera ou outro dispositivo de digitalização para capturar uma imagem ou uma representação eletrônica da versão física do documento ou objeto. Os arquivos digitalizados são, essencialmente, cópias eletrônicas de documentos ou objetos físicos, como livros, fotografias, pinturas, entre outros.
Do ponto de vista da sua materialidade, portanto, a principal diferença entre os arquivos nativamente digitais e os arquivos digitalizados está na forma como são criados e existem. Enquanto os arquivos nativamente digitais são produzidos diretamente em formato eletrônico, sem uma contraparte física correspondente, os arquivos digitalizados são gerados a partir de uma conversão de uma versão física para o formato eletrônico.
Outra diferença importante está na qualidade e fidelidade da representação em ambientes digitais. Os arquivos nativamente digitais tendem a oferecer uma qualidade e precisão superiores, pois são criados digitalmente desde o início, sem a necessidade de capturar uma imagem ou reprodução eletrônica de um objeto físico. Por outro lado, os arquivos digitalizados podem apresentar variações na qualidade, dependendo do processo de digitalização e das condições do objeto original.
Além disso, os arquivos nativamente digitais são mais versáteis e flexíveis em termos de edição, compartilhamento e armazenamento, pois não estão restritos às limitações físicas. Já os arquivos digitalizados, embora tenham uma representação eletrônica, ainda estão sujeitos às limitações e características do objeto físico original.
Flexibilidade x Obsolescência
Apesar da maior flexibilidade dos arquivos digitais em termos de edição, compartilhamento e armazenamento, é importante reconhecer que eles também estão sujeitos aos impactos da obsolescência tecnológica. A rápida evolução das tecnologias digitais pode tornar formatos de arquivos e softwares obsoletos em um curto período de tempo.
À medida que novas versões de programas e formatos são lançadas, os arquivos digitais criados em versões anteriores podem se tornar incompatíveis com os sistemas e aplicativos mais recentes. Isso pode resultar em problemas de acesso e visualização dos arquivos, dificultando a sua abertura ou interpretação correta.
O armazenamento de longo prazo de arquivos digitais requer atenção contínua. Mídias de armazenamento, como discos rígidos, pendrives e CDs, podem se deteriorar ou se tornar obsoletas ao longo do tempo. O avanço da tecnologia pode tornar essas mídias inacessíveis ou menos confiáveis, o que pode levar à perda de arquivos valiosos.
A obsolescência tecnológica também pode afetar os formatos de arquivo em si. Alguns formatos podem se tornar menos suportados ao longo do tempo, o que dificulta a abertura e o uso dos arquivos. A conversão ou migração de formatos de arquivo é muitas vezes necessária para garantir a sua acessibilidade e preservação contínua.
Diante desses desafios, é fundamental adotar práticas de gerenciamento de arquivos digitais que considerem a longevidade e a preservação dos mesmos. Isso pode incluir a migração periódica de arquivos para formatos mais atualizados e amplamente suportados, bem como a implementação de estratégias de backup e armazenamento redundante para evitar perdas.
Salvos pelo digital
Há entretanto obras físicas que, paradoxalmente, só tem sua existência preservada pelo processo de digitalização. Um caso interessante nessa perspectiva, é o da restauração da obra “Formas Únicas da Continuidade no Espaço”, de Umberto Boccioni, que é considerada uma peça seminal da coleção do MAC-USP e possui importância internacional. Essa escultura marca o início do movimento futurista italiano no início do século XX e exerceu grande influência sobre o desenvolvimento da arte moderna posterior.
“O original em gesso, que hoje pertence ao acervo do MAC, é uma das 11 esculturas que Boccioni expôs na mostra de escultura futurista que fez em Paris, em 1913”, explica Ana Gonçalves Magalhães, atual diretora do Museu e pesquisadora à frente da pesquisa sobre a obra. “Com a morte prematura de Boccioni, em 1916, o destino de suas esculturas sofreu reveses, o que fez com que apenas três dos gessos que ele havia apresentado na exposição de 1913 sobrevivessem.”
A famosa figura abstrata, que se destaca pela nítida impressão de caminhar e se movimentar no espaço, acabou se popularizando através de uma série de tiragens em bronze realizadas, inicialmente, por encomenda do líder do movimento futurista, e amigo do artista, Filippo Tommaso Marinetti, nos anos 1930. “O fato de as tiragens em bronze terem ganhado coleções de museus no mundo inteiro, dentre os quais o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMa, fez com que a historiografia da arte moderna desconsiderasse a importância do gesso para Boccioni na veiculação de seu conceito de escultura futurista.”
Com o apoio da Prefeitura de Milão e do Museo Del Novecento no exterior, e da atuação do FAB LAB Livre SP no município de São Paulo, além das parcerias com o Instituto de Física e a Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, foi possível construir um molde 3D da escultura de Boccioni, permitindo que a obra seja preservada e difundida. O processo, que envolveu tecnologias de escaneamento, radiografia e análises de imageamento, consideradas não destrutivas, indica assim outras nuances na discussão de acervos digitais.
Mesmo não sendo nativamente digital, a construção desse novo molde funciona como um parâmetro relevante para refletir sobre o arquivamento digital de obras não nativamente digitais, mas que só podem circular atualmente devido à existência de sua cópia digital. É um equívoco, no entanto, identificar o arquivo 3D como a própria obra, pois ele é apenas uma representação virtual. Nesse sentido, abrem-se outras questões relacionadas aos arquivos digitais, como saber se esse arquivo pode ser disponibilizado, e se ele representa a obra em si ou se é considerado outra obra.
É importante destacar, ainda, que o objetivo principal desse tipo de digitalização, como a que foi feita a partir do molde de gesso de Boccioni, não é apenas reproduzir a obra, mas também contar sua história e preservar sua relevância no contexto artístico. Em relação a artistas como Palatnik e Waldemar Cordeiro, cujas obras exploram a interseção entre arte e tecnologia, e que sofrem os impactos do processo de obsolescência programada, poderia ser válido considerar a fabricação das peças originais e inseri-las como documentos técnicos, permitindo uma compreensão mais completa do processo criativo e da materialidade da obra.
Há que se contemplar, também, outros desafios, quando a obra demanda uma materialidade específica, como no caso de uma artista como Tacita Dean. O trabalho de Dean envolve elementos que não podem ser reproduzidos digitalmente, como projetores super-8 específicos, que colocam em questão a viabilidade de arquivar completamente suas criações nesse formato.
É importante considerar também a diferença entre o digitalizado e o digital do ponto de vista arquivístico. Enquanto o digitalizado se refere a uma cópia eletrônica de uma obra física, o digital envolve a criação de uma obra diretamente em formato eletrônico, sem uma contraparte física. Essa distinção é fundamental para compreender como as obras são arquivadas e preservadas, bem como suas limitações e possibilidades.
A flexibilidade dos arquivos digitais implica também que as obras sejam modificadas ao longo do tempo pelo próprio artista. Por exemplo, a artista Regina Silveira atualizou sua obra Paradoxo do Santo ao longo do tempo, criando outras versões e descolando-se da documentação do MAC-USP sobre as obras. Já Giselle Beiguelman, pactuou na próprio processo de doação de O Livro depois do Livro, ao mesmo museu, que a obra teria seus arquivos atualizados sempre que necessário, cabendo à instituição preservar a versão original doada ao Museu e sua versão atualizada. Processo semelhante foi feito pela artista no processo de doação de Recycled ao Museu Nacional da República, seguindo um procedimento já utilizado pelo ZKM, quando da incorporação de Sometimes Always/ Sometimes Never ao seu acervo museológico.
Nessa perspectiva, as conversas com artistas em vida desempenham um papel crucial na abordagem de arquivamento digital. Ao manter um diálogo contínuo com os artistas, é possível obter informações valiosas sobre suas intenções e instruções específicas para a obra, contribuindo para uma preservação mais fiel e autêntica.
Obras colaborativas também são um desafio para o arquivamento digital, especialmente quando envolvem participação do público no processo de construção das obras, ou componentes multimídia, como a obra Sal sem carne (1974), de Cildo Meireles, que inclui capa, encarte, LP e áudio. É necessário estabelecer diretrizes claras sobre como essas obras devem ser preservadas e apresentadas digitalmente, garantindo que todas as partes envolvidas sejam adequadamente reconhecidas e representadas.
Nesse contexto, o artista vivo desempenha um papel fundamental ao doar o arquivo e as instruções da obra. Ao fornecer orientações precisas sobre como a obra deve ser arquivada e apresentada, o artista assegura que sua visão e intenção sejam preservadas. No entanto, é importante considerar se essas instruções devem ser específicas para um suporte particular ou mais genéricas, permitindo a adaptação da obra em diferentes contextos e plataformas.
Arquivos distribuídos e plataformas centralizadas
A era digital trouxe consigo novas possibilidades no campo do arquivamento, permitindo a concepção de acervos distribuídos e unificados em plataformas centralizadas. Um exemplo notável é o arquivo do FILE (Festival Internacional de Linguagem Eletrônica), que utiliza essa abordagem inovadora para preservar e compartilhar o trabalho de diversos artistas.
No arquivo do FILE, as páginas dos artistas são extraídas das fichas de inscrição, fornecendo informações detalhadas sobre suas obras, trajetórias e contribuições para a linguagem eletrônica. Essa abordagem garante que o arquivo seja alimentado diretamente pelas fontes originais, mantendo a precisão e a integridade das informações.
Uma solução interessante proposta pelo arquivo do FILE é a incorporação dos verbetes dos artistas na Wikipedia. Essa integração permite uma compatibilização de IDs entre o site do FILE e a Wikipedia, unificando as informações e facilitando o acesso e a pesquisa sobre os artistas e suas obras. Dessa forma, o arquivo do FILE não apenas preserva o material original, mas também enriquece a documentação existente na Wikipedia, ampliando o alcance e a visibilidade dos artistas e de sua contribuição para a linguagem eletrônica.
No entanto, apesar das vantagens do arquivamento digital e das soluções adotadas pelo arquivo do FILE, existem desafios significativos a serem enfrentados. Um dos principais desafios é a sustentabilidade e a preservação a longo prazo dos arquivos digitais. A rápida evolução tecnológica pode levar à obsolescência de formatos de arquivo e tornar difícil a recuperação e o acesso aos dados armazenados.
Além disso, a integração entre plataformas e sistemas diferentes requer um cuidadoso gerenciamento de metadados e padronização de formatos. A compatibilização de IDs e a unificação das informações entre o arquivo do FILE e a Wikipedia exigem esforços contínuos de coordenação e colaboração entre as equipes responsáveis por essas plataformas.
Outro desafio está relacionado à autenticidade e à integridade dos arquivos digitais. Como garantir a autenticidade das obras e dos registros em um ambiente digital em constante mudança? Questões de direitos autorais e proteção dos dados também precisam ser abordadas para garantir a conformidade legal e ética no arquivamento digital.
Apesar desses desafios, o arquivamento digital e a criação de acervos distribuídos oferecem oportunidades únicas para preservar, disseminar e democratizar o acesso ao patrimônio cultural. Ao desenvolver soluções, como a integração com a Wikipedia, o arquivo do FILE mostra como é possível criar um ambiente colaborativo, interconectado e confiável para a preservação e o estudo não só de obras de arte nativamente digitais, mas também para o desenvolvimento de uma um arquivo inovador no campo da Arquitetura e do Design.
[1] Texto redigido pelo ChatGPT, a partir de anotações da reunião realizada no dia 25 de maio de 2023, com a participação de Bruno Moreschi, Eduardo Costa, Giselle Beiguelman, Heloisa Espada, Paula Perissinotto, Priscila Artantes. Edição e revisão: Giselle Beiguelman.